Em Cima da Hora
“Esperança, presente!”
Carnaval 2023

S I N O P S E

“Eu Sou hua escrava de V.S administração do Cap.am Antoº Vieira de Couto, cazada. Desde que o Cap.am pª Lá foi administrar, q. me tirou da Fazdª dos algodois, onde vevia co meu marido, para ser cozinheira da sua caza, onde nella passo mto mal. A primeira hé q. há grandes trovoadas de pancadas enhum Filho meu sendo huã criança q lhe fez estrair sangue pella boca, em min não poço esplicar q Sou hu colcham de pancadas, tanto q cahy huã vez do Sobrado abacho peiada; por mezericordia de Ds esCapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confeçar a tres annos. E huã criança minha e duas mais por Batizar. Pello ã Peço a V.S pello amor de Ds e do Seu Valim ponha aos olhos em mim ordinando digo mandar a Porcurador que mande p. a Fazda aonde ele me tirou pa eu viver com meu marido e Batizar minha Filha.

De V.Sa. sua escrava Esperança Garcia” (6 de setembro de 1770)

A terra rachada como testemunha do Brasil da desonra: correm pelas veias dos rios, das matas e das fazendas a covardia da escravização. O terror branco que deixou nossa história podre e carcomida. Corrompeu pelas frestas da Capitania do Piauí setecentista o alvo flagelo contra corpos negros sequestrados, africanas vivências que lutavam diante da dor, jamais se curvando a qualquer senhor. Donas de si, negras e negros que resistiam. Existiam. Existem.

E lá por aquelas bandas esquecidas, entregue aos desprezíveis opressores e à vergonha dos grilhões, brotou Esperança. Nasceu Esperança. Dela, Orixá cuidava. Amparava-a com o machado da justiça. A filha nunca esquecida! Xangô do trovão contra injustiças, da brasa e da lava viva do vermelho do sangue dos corpos que são, estava lá, com ela. Xangô, justiceiro e guerreiro, dando seu Axé à preta cujo destino era esperançar todas as vidas negras. Guerreira que cresceu e aprendeu a ler e a escrever na Fazenda Algodões dos jesuítas, mesmo com o trabalho duro da roça, que deixava as mãos lanhadas pelo capim da terra seca. Trabalhava no pasto do gado, nas plantações, na casa, fiando algodão e o seu destino. Vivia na pobreza e na dureza, corpo sem descansar no chão batido, porém usava a sabedoria contra as dores da labuta imposta. Mulher, mãe, preta, escravizada! Esperança com tinta nas mãos e a pena como lança! O saber como arma! Kaô Kabecilê! Salve o Senhor da Pedreira e a defensora Esperança Garcia, labareda do fogo da justiça de Xangô!

Quando então um marquês expulsou os jesuítas, ela foi levada por um capitão. Agora escravizada em outra fazenda da Inspeção de Nazaré, separada à força do marido e dos filhos maiores, mais tortura em seu corpo, enquanto ela trabalhava na residência colonial como cozinheira, na rica cozinha… dos outros. A violência contra sua pele, carne e alma. Os rasgos das feridas. Esperança nunca com a cabeça baixa e o feitor que a peava. E a ira veio das entranhas, da força da ancestralidade: justiça! Eis a imposição! Não é não! Trovões de pancadas que virariam trovões de Esperança, da mulher que não desiste, que se levanta contra a violência! A mulher que é resistência, que fez a resistência, uma voz para múltiplas vozes, a fúria para fazer valer a sua vontade!

Esperança agoniza, mas não morre, brada! E ela escreveu para batalhar pelos seus. Escreve, Esperança, Tu que és verbo vivo da justiça de Xangô! Naquela realidade brutal onde pessoas negras não tinham acesso à educação, Esperança Garcia fez valer sua inteligência e nenhum doutor com ela se criou! Gritou, com palavras no papel, a carta ao governador, denunciando as torturas contra os negros – “Eu sou uma escrava de Vossa Senhoria da administração do Capitão Antônio Vieira do Couto, casada. Desde que o capitão lá foi administrar que me tirou da Fazenda Algodões, onde vivia com o meu marido, para ser cozinheira da sua casa, ainda nela passo muito mal”. Exigiu justiça. Peticionou seu desejo com coragem, ousadia e força para resistir – “A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho meu sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca, em mim não posso explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo peiada; por misericórdia de Deus escapei”.

Usou a religião e pediu até o batismo da filha, além de confissão para ela e suas irmãs, tudo para vencer a tirania – “A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar há três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar”. A carta que virou símbolo de justiça, a carta que é o verdadeiro direito. A preta que lutou, reconhecida como a primeira advogada do Piauí, de punho erguido contra os opressores. Esperança é viva na bravura de denunciar o sofrimento com palavras – “Peço a Vossa Senhoria pelo amor de Deus ponha aos olhos em mim ordenando, digo mandar ao procurador que mande para a fazenda de onde me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha”.

Então, escreve, Esperança, por favor, escreve! Naquele fim de mundo, escreve! Letras eternas que deram o primeiro sopro de vida à Literatura Negra brasileira.

Esperança viva nas suas escrevivências, fiando uma guia para Conceição. Esperança para todas as Marias, a voz da dignidade ressoando nas páginas da dos Reis e na vida nobre da de Jesus, juntas através das letras esperançadas! Esperança nos cadernos negros das páginas do Brasil, a alma jamais escravizada! Esperança para lembrar de lutar e reiterar que a justiça é a pedagogia do Esperançar.

Eis que chegou a hora de soltar o grito! De escreviver Esperança Garcia na Sapucaí! Em Cima da Hora, chegou a hora de Cavalcanti girar no Axé da mulher que jamais fraquejou! Sempre e para sempre, é tempo de exaltar a força das mulheres negras que pariram este Brasil! Então, gritemos nosso Azul e Branco na Avenida! Morro da Primavera, ergamos o punho com respeito e garra, e, sem medo, vamos em frente:

– Esperança, presente!

Carnavalescos:
Marco Antônio Falleiros e
Carlos Eduardo

Enredistas, Sinopse e Pesquisa:
Victor Marques e
Clark Mangabeira

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